20
Mar 09

A Culpa é da Branca de Neve
 

Sentia já o sangue fresco a correr-me nas veias aquecendo-me as mãos enquanto as mantinha debaixo da gélida água da torneira. Sempre detestara a parte do pós ataque. O sangue seco colava-se-me aos dedos e entranhava-se-me por debaixo das unhas compridas. Era por isso que as pintava todos os dias num tom vermelho escuro, disfarçando assim estas pistas denunciadoras do meu hábito sangrento. Bem, não era bem um hábito, era mais uma necessidade. Afinal, como todos os humanos, eu lutava para não morrer. Talvez morrer também não seja o termo certo, uma vez que já passei por essa fase, nada agradável diga-se, há muito tempo. Vamos apenas considerar que independentemente do que sou, quero continuar a existir. E, para que isso aconteça, tenho de me alimentar. Vendo as coisas deste prisma trata-se de algo bastante simples de explicar.

Olhei-me ao espelho e esbocei um sorriso de satisfação. As minhas faces estavam a ficar rosáceas à medida que o novo sangue percorria o meu corpo. Hoje a parva da minha colega humana Celine já não poderia dizer quando me visse:

- Oh Isabel! Estás tão pálida, sentes-te bem? Queres um copo de água com açúcar? Acho que precisas de apanhar sol.

- Estou óptima. Estou simplesmente a concorrer para ser a próxima Branca de Neve – respondo-lhe eu com um sorriso irónico que ela não consegue entender. Conheci a verdadeira Branca de Neve e posso garantir que as histórias que se contam sobre ela foram muito “embelezadas”. Como é que toda a gente via aquela pele branca e não a relacionava com vampiros! É algo que nunca consegui entender. Bem, a madrasta dela percebeu tudo, mas acabou por ser a má da fita. E agora, parte da vida dela é uma história de embalar para crianças! Ah! As gargalhadas que ela não deve dar à conta disso. Por acaso tenho saudades dela, há uns séculos que não a vejo. Interrogo-me se ela ainda fará aquelas orgias sangrentas de que tanto gostava. Estou mesmo a precisar de me divertir. Vou procurar o telefone dela quando chegar ao trabalho. Os da nossa espécie sabem sempre como se hão-de encontrar.

Qualquer dia mordo a cabra da Celine, já pensei nisso, o problema seria que depois, e dado o meu historial com ela, podia acabar mesmo por matá-la. Ou então, com um feitio como o dela, sempre a falar mal dos outros nas costas deles, provavelmente cairia instantaneamente para o lado, agoniada com as primeiras gotas do seu sangue envenenando. Não, o meu método tem de se manter o mesmo se não quero dar nas vistas. A escolha do humano tem de ser aleatória.
Olho para o chão. A minha vítima ainda se encontra pálida e desmaiada. Espero não lhe ter retirado sangue a mais, não me apetece ter o trabalho de me livrar de um corpo a meio do dia e mais tarde ter o CSI à perna. Quando chegar lá fora faço uma chamada anónima e chamo uma ambulância a dizer que houve um acidente. Que tipo de acidente devo inventar desta vez? Alguma coisa me há-de ocorrer. Tenho séculos de experiência a meu favor.

Agora, que já tenho as mãos limpas, posso tirar a peruca negra deixando o meu farto cabelo loiro aparecer e substituir a blusa preta manchada de sangue por uma imaculada cor-de-rosa bebé. Visto uma mini-saia, maquilho-me e coloco uns falsos óculos de ler. Fico satisfeita. Quem poderia adivinhar que por detrás deste ar angelical está uma vampira? Ninguém.

publicado por sangue-fresco às 12:02

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